No campo e na cidade, trabalho escravo exige enfrentamento e punição

23/04/2015

No dia 17 de abril de 1996, em Eldorado dos Carajás, Pará, dezenove trabalhadores Sem Terra foram assassinados pela Polícia Militar. Um verdadeiro massacre. A data marcaria para sempre a história da luta pela terra no Brasil e no mundo. Desde aquele ano o dia 17 de abril é lembrado como o Dia Internacional da Luta Camponesa. 
 
No Brasil uma das principais pautas de enfrentamento no campo é ainda a prática de trabalho escravo. No entanto, nem mesmo a legislação brasileira reconhece que existe trabalho escravo no Brasil, porque considera a abolição da escravatura em 1888, porém essa ainda é uma prática bastante comum, ainda que não reconhecida completamente pelas leis brasileiras. O crime de submeter alguém as condições de trabalho análogo a escravidão no Brasil só é regulamentado pelo Código Penal, que existe desde o início do século XX, assim como a legislação trabalhista referente ao campo tem mais de 40 anos.
 
Portanto tanto a existência do crime, como a obrigação para que os direitos trabalhistas sejam cumpridos, são coisas há muito tempo conhecidas e descumpridas no Brasil. O trabalho análogo a escravidão é caracterizado quando os trabalhadores e trabalhadoras não conseguem se desligar do patrão por fraude ou violência, quando são forçados a trabalhar contra sua vontade, quando são sujeitos a condições desumanas de trabalho ou quando são obrigados a trabalhar até a exaustão. 
 
O artigo 149 do Código Penal prevê de dois a oito anos de cadeia para quem se utilizar dessa prática. É previsto o crime em quatro situações: cerceamento de liberdade de se desligar do serviço, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva. Há, também, acordos e convenções internacionais que tratam do tema da escravidão contemporânea. Como as convenções número 29, de 1930 e a 105, de 1957, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ambas ratificadas pelo Brasil. 
 
Segundo o Relatório Conflitos do Campo, lançado esta semana pela Comissão Pastoral da Terra, em 2014, 1752 pessoas foram libertadas de situações análogas as de escravidão no Brasil, 55% dos casos se concentram nas regiões Norte e Nordeste e 46% estão ligados a agricultura e pecuária. Segundo o advogado André Barreto, da Rede Nacional de Advogados/as Populares (Renap), no campo são comuns casos de cerceamento de liberdade, mas principalmente de trabalho degradante e exaustivo, “Nos engenhos do Nordeste, por exemplo, é comum nos depararmos com trabalhadores e trabalhadoras sem as condições mínimas de trabalho, enfrentando uma jornada de 14 horas de trabalho por dia, sem intervalo para descanso, com pouca alimentação, sem água potável para higiene e consumo e sem acesso à banheiros. Em muitos casos também fazem aplicação de agrotóxicos sem o uso do equipamento de segurança individual. Isso é trabalho degradante e trabalho degradante é uma forma de trabalho escravo”, destaca.
 
Segundo Simone Santos, diretora de política de assalariados do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Petrolina (STTR), em Pernambuco, no campo as mulheres encontram-se mais vulneráveis a esse tipo de exploração, ela afirma que na região também são identificados casos de trabalho escravo infantil.
 
Entre os estados do Semiárido brasileiro, o Piauí e o Ceará registraram um aumento no número de ocorrências de trabalho escravo em 2014. “Infelizmente o trabalho escravo ainda é muito presente no Piauí. Semanalmente, são dezenas de ônibus e centenas de trabalhadores que deixam suas famílias e saem em busca de trabalho. Vejo que essa situação é imposta ainda pela ausência de um projeto de reforma agrária, que esteja voltado para a realidade e a convivência com o Semiárido. Falta política pública adequada e contextualizada voltada para o fortalecimento da agricultura familiar”, afirma Carlos Humberto, coordenador executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo estado do Piauí. Na região é comum que o trabalhador ou trabalhadora fique preso a uma dívida, que seus documentos fiquem retidos, o local do trabalho geralmente é isolado geograficamente e há segurança feita por pessoas armadas. 
 
O retrato do trabalho escravo no Brasil pode ainda piorar se o Projeto de Lei 4330, do deputado Sandro Mabel (PL-GO) virar lei. A proposta permite a terceirização de qualquer tipo de atividade em empresas privadas, públicas e de economia mista. Permite a contratação de funcionários e funcionárias terceirizados em atividade meio (serviço necessário, mas que não é a atividade principal da empresa) e atividades fim (atividade principal da empresa). Atualmente, a terceirização é permitida apenas para atividades meio.
 
No campo, podemos usar o exemplo de uma usina que contrata trabalhadores de uma empresa terceirizada para produzir cana. Dessa forma a usina passa a responsabilidade trabalhista para um ou várias pessoas jurídicas menores, que nem sempre vão garantir os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras contratadas. Ainda segundo o advogado André Barreto, o PL 4330 não responsabiliza os empregadores sobre as violações de direitos e a não responsabilização acelera a violação sistemática, “é muito difícil a responsabilização de empresas terceirizadas, elas ‘somem’ muito rápido, fecham, trocam o CNPJ, mudam de donos”, explica.
 
A bancada ruralista tem atuado no Congresso Nacional pela aprovação do PL 4330. De acordo com um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em parceria com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em média, um trabalhador terceirizado trabalha três horas a mais por semana e ganha 27% menos que um empregado direto. Ainda segundo o relatório da CPT, 90% dos trabalhadores resgatados nos 10 maiores flagrantes de trabalho escravo contemporâneo, entre 2010 e 2013, eram terceirizados.
 
Simone, do STTR de Petrolina acredita que se o PL for aprovado, trabalhadores e trabalhadoras rurais serão duramente afetados: “as principais vítimas serão os pobres da zona rural que contribuem com a sua mão de obra para o enriquecimento dos grandes latifundiários”, sentencia.
Falando sobre como as práticas de convivência com o Semiárido podem ajudar no enfrentamento ao trabalho escravo, Carlos Humberto afirma: “As iniciativas de convivência com o Semiárido, desenvolvidas pela sociedade civil organizada, através da ASA, tem sido uma resposta concreta no combate à migração forçada, que caracteriza o trabalho escravo. Pois a garantia da água nas famílias e as tecnologias de convivência são ações concretas de manutenção das famílias no campo, com a garantia também de segurança alimentar”.
 
Fonte: Monyse Ravena - Asacom
Fotos: Foto 1 de João R. Ripper e demais do Google 


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