As mulheres antes anônimas passam a fazer parte de espaços de construção, mobilização e defesa dos seus direitos

12/03/2015
As mulheres antes anônimas passam a fazer parte de espaços de construção, mobilização e defesa dos seus direitos

No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher e prestes a completar 48 anos, o Movimento de Organização Comunitária (MOC) conta hoje com uma mulher em sua Secretaria Executiva e 100% de mulheres ocupando as Coordenadorias dos seus Programas institucionais. Mas nem sempre foi assim, durante alguns anos a organização teve nos seus quadros a composição majoritária de homens.
 
Na década de 60 as mulheres eram minoria quando o MOC surge buscando atuar na perspectiva de organização da sociedade civil, de início com público urbano e depois tendo como foco de sua atuação o rural. Com o desenvolver dos trabalhos junto aos  Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e as Associações Comunitárias, o MOC percebe que o quadro de sócios das instituições era composto prioritariamente por homens. Até então o trabalho das mulheres nas propriedades era entendido apenas como “ajuda”, considerando assim que elas apenas desenvolviam as tarefas da casa e a educação dos filhos, não entendendo este como um trabalho, enquanto as atividades dos homens eram consideradas como o trabalho que trazia o sustento da família. 
 
Neste contexto, as mulheres não possuíam o direito de serem associadas aos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, por não serem consideradas trabalhadoras rurais. Os próprios documentos das mulheres traziam que elas eram domésticas, ou do lar, em nenhum documento aponta sua profissão como trabalhadoras rurais. A mulher não havia despertado para o reconhecimento do seu papel na propriedade familiar e não tinha noção do grau de subordinação em que se encontrava.
 
A partir da década de 70 em todo Brasil acontecem algumas lutas por condições de igualdade de gênero, fazendo emergir os movimentos feministas. Já na década de 80, o então Programa de Movimentos Sociais começa a reunir as mulheres, filhas, irmãs e mães dos Dirigentes Sindicais, isso por perceber que nas reuniões os homens estavam presentes e as mulheres os aguardavam nas recepções das entidades. 
 
Em paralelo, através da relação com a Rede Mulher de Educação, o MOC em 1986 discute e reflete sobre a necessidade de desenvolver um trabalho específico com as mulheres, pois, naquele momento, já era evidente que, investir nesse segmento, traduzia contribuir, significativamente, com a redução das desigualdades sociais e com o fortalecimento da agricultura familiar e da sociedade civil organizada. Na ocasião aconteceu o 1º Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Urbanas, com a participação de 125 mulheres.
 
Representação Política
Das reuniões pontuais com as agricultoras passa a se formar e consolidar as Comissões Municipais de Mulheres em alguns municípios e em outros os Movimentos de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR), que surgiu na região sisaleira em 1984, como estratégia de construção, mobilização e defesa dos direitos civis, políticos, sociais e econômicos das mulheres. Com a organização do movimento assessorado pelo MOC, cresce a discussão em torno da representação política das mulheres rurais. Uma das lideranças deste movimento é Maria Madalena dos Santos Silva, mais conhecida como Madalena da Queimadinha, ou Madalena de Araci, que dedicou 33 anos da sua vida ao MMTR e foi a primeira mulher a assumir a presidência de um Sindicato dos Trabalhadores Rurais na região do sisal.
 
Antes de falecer em 2013, Madalena junto às suas companheiras de luta, participou dos projetos do MOC se envolvendo em atividades para geração de renda, aquisição de cisternas para as comunidades, através do fundo rotativo e desenvolvimento de práticas que ajudassem na agricultura familiar. Madalena participou ainda de grandes mobilizações que desencadeou no reconhecimento constitucional das mulheres agricultoras como trabalhadoras rurais e no direito da aposentadoria especial. As bandeiras de lutas erguidas por tantas mulheres, de tantos lugares do mundo não se diferem muito das organizações de mulheres da região semiárida da Bahia, sobretudo, na luta por uma vida sem violência, seja ela econômica, física, verbal ou psicológica. 
 
No período de 1987 e 1988, num contexto político de redemocratização, os grupos de mulheres rurais realizaram um intenso trabalho de discussão e levantamento de propostas, elaboração de abaixo-assinados e entrega de emendas populares aos constituintes, cabendo ao MOC, nesse processo, a assessoria ao MMTR do semiárido baiano. “Toda essa mobilização, realizada conjuntamente com centenas de outras organizações no país, culminou por um lado, na inserção de inúmeras propostas populares que beneficiaram legalmente as mulheres do campo na Constituição de 1988 como, por exemplo, licença maternidade, aposentadoria aos 55 anos, o reconhecimento da trabalhadora rural enquanto categoria profissional e por outro, na percepção, por parte do MMTR da região e, essencialmente, das mulheres, acerca da possibilidade de se tornarem sujeitos sociais transformadores, reflexivos, participantes, capazes de reinventar e reconstruir destinos”, afirma Célia Firmo.
 
Vale destacar que um dos marcos na luta das mulheres foi a retificação dos seus nomes nos documentos, pois normalmente eram registrados em cartório de modo errôneo, o que lhes impedia de ter acesso ao direito da aposentadoria. Paralelo a isso, a mulheres tinham como grande demanda outros direitos básicos como: salário maternidade, documentação civil, bloco de notas (para comercializar produtos da AGRIFAM) atendimento a saúde (ginecológico e da mama), além do direito de se filiar aos sindicatos e conseqüentemente participar das tomadas de decisões. Mas para isso, elas entendiam que era preciso se organizar para se fortalecer e enfrentar o machismo, inclusive dos companheiros, já que as desigualdades de gênero e o lugar atribuído às mulheres eram (e continua sendo) compreendidos como algo relativo à natureza feminina. 
 
Programa de Gênero
Com isso, a mulher que carregava latas de água na cabeça numa região caracterizada pelo fenômeno da seca, pelo cenário rude e de chão calcinado, decidiu sair do anonimato e passa a fazer parte de espaços de construção, mobilização e defesa dos direitos civis, políticos, sociais e econômicos das mulheres. Ao mesmo tempo, dentro do MOC, cria-se o subprograma de mulheres, que depois se tornaria o Programa de Mulheres e hoje se identifica como o Programa de Gênero, que já contou com cinco coordenadoras: Sônia Coutinho e Alvaiza Cerqueira, que não fazem mais parte da equipe funcional, Célia Firmo, hoje Secretária Executiva do MOC, Vandalva Oliveira, hoje coordenadora pedagógica da instituição e Selma Glória, que desde 2011 é coordenadora do Programa de Gênero.
 
Vandalva que foi coordenadora do Programa de Gênero entre 2007 e 2010 comenta que nesse percurso muitas coisas a marcaram. “De modo especial, foi quando, mergulhando mais profundamente nos estudos sobre gênero e sobre a luta das mulheres - me encontrei - pude ver minha própria história. Identifiquei que a minha vida de filha, de irmã, de esposa, de mãe, de amiga, de mulher... tinha muitas marcas da desigualdade de gênero, mas também tinha muito de resistência e de resiliência para as superações necessárias”, diz. 
 
Vandalva confessa que aos poucos, nas rodas de prosas com as mulheres sobre suas histórias, foi encontrando a oportunidade e a possibilidade de mudar rumos, tendo a solidariedade e cumplicidade entre as mulheres como ferramenta para esta mudança. “Foi aí que desnudei e desnaturalizei a violência contra as mulheres, a partir da percepção das violências que sofri, sem nem saber que era violência. Foi aí também que entendi a relevância da ousadia e as fortes razões do MOC em instituir um Programa que busca mexer com componentes da vida 'quase intocáveis’. Desafios ainda posto, para a construção da igualdade e da equidade que entendemos necessária para vivermos num mundo onde mulheres e homens, na condição de sujeitos de direitos iguais sejam mais gente, e tenham estes direitos marcando suas vidas de dignidade nas suas vidas, e não a marca da exclusão, da submissão e da opressão”, conclui.
 
Já com atuação do MMTR na região de Feira e Sisal, o Programa de Gênero do MOC começa a perceber, refletir e entender que a autonomia e empoderamento das mulheres passam, também, por questões relacionadas à geração de trabalho e renda, visto até então como um problema complexo e ainda com poucas perspectivas. Para atacá-lo o Programa de Gênero construiu duas frentes. Uma delas buscou discutir junto ao então Programa Agrícola, a participação das mulheres nas propriedades familiares e, em 2001, com o convite da Casa da Mulher do Nordeste o programa começa a discutir a articulação de grupos de mulheres produtoras, o que hoje se tornou a Rede de Mulheres Produtoras da Bahia, a partir de experiências com grupos de mulheres produtoras, especialmente, nos municípios de Araci e Valente.
 
Desafios
Com o fortalecimento dessas organizações, o MOC espera dinamizar a participação das mulheres em esferas decisórias. Entre as ações desenvolvidas está a sensibilização das trabalhadoras, que precisam romper com uma defasagem histórica de submissão. Algumas temáticas em debate são auto-estima, participação da mulher na sociedade, violência e exploração sexual, e geração de renda. A partir destas discussões, as mulheres traçam suas prioridades, demandas, reivindicações, propostas e estratégias de atuação.
 
O MOC passou a perceber que incorporar a reflexão sobre as relações sociais entre homens e mulheres nas ações que desenvolve com as organizações sociais do território sisaleiro e de outros espaços tem se mostrado uma estratégia fundamental para o desenvolvimento sustentável e solidário destas regiões. Assim, ao longo da sua trajetória os programas e projetos começam a inserir a dimensão de gênero em seus conteúdos programáticos, pois suas ações perpassam também pelos outros programas da instituição.
 
No contexto atual o Programa de Gênero do MOC atua nos municípios de Araci, Serrinha, Nova Fátima, Ichu, Quijingue, Retirolândia, Conceição do Coité, Santa Luz e Riachão do Jacuípe. No campo das conquistas das mulheres rurais, segundo Selma Glória, algumas são significativas como a constituição dos Conselhos Municipais dos Direitos das Mulheres em Retirolândia e Serrinha, e a aprovação da Lei de criação desses Conselhos em Araci e, Conceição do Coité. Selma destaca ainda a constituição de cooperativas de comercialização e articulação em redes. “Vale ressaltar a institucionalização dos Movimentos de Mulheres Municipais em Araci, Retirolândia, Serrinha, Teofilândia e Quixabeira, e regional, o qual vem possibilitando acesso aos recursos públicos e privados, bem como a ocupação das mulheres em espaços de decisão política, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), Comitê de Documentação da Trabalhadora Rural, Comissões de Água, Conselhos Municipais, MMTR Nordeste e dos o Conselhos de Desenvolvimento Econômico e Social (CODES)”, ressalta;
Segundo Selma, o propósito prioritário do programa tem sido contribuir para a mudança das relações sociais de gênero no território sisaleiro. “Entendemos que é importante fomentar o empoderamento das mulheres trabalhadoras, em especial as rurais, despertando nas mesmas reflexões que façam surgir o desejo de reconstruir sua história com sonhos, emoções, esperanças e principalmente ações próprias, fazendo aparecer, assim, elementos que as configurem como sujeitos sociais autônomos”, enfatiza.   
 
 
Maria José Esteves
Programa de Comunicação do MOC


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