Programa Uma Terra e Duas Águas: oito anos de contribuições para a convivência com o Semiárido

06/02/2015

Muitos conhecem o sertão nordestino pela literatura, com clássicos como “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto e “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, ou pelas mazelas contadas pela imprensa. Outros sabem que nos últimos anos a paisagem do sertão vem mudando graças a um movimento iniciado em 2003, pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede que reúne centenas de organizações não governamentais, uma rede de organizações da sociedade civil que influencia nas políticas de convivência para o Semiárido como parte do processo democrático. 
 
“O debate na ASA Nacional e na ASA Bahia é que a política de estoque da água é algo essencial para a convivência com o Semiárido. As atividades mais diretas da ASA começaram então pelo processo de estoque da água de beber e de consumo humano e se criou então o P1MC. Passo histórico e que estamos perto do um milhão de cisternas de placas”, afirma Naidison Baptista, coordenador geral da ASA.
 
Política de Estoque
Financiado pelo Governo Federal, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) a que Naidison se refere, foi iniciado pela ASA em 2003 e desde então vem desencadeando um movimento de articulação e de convivência sustentável com o ecossistema do Semiárido. Cisternas de consumo humano, com capacidade de armazenar 16 mil litros, e suprir uma família com cinco pessoas, por nove, 10 meses. Entretanto, o fundamental estava na maneira como construir as cisternas e como escolher as famílias que participariam do programa. Ou seja, não se tratava de uma iniciativa de construção, onde uma empresa, ou um grupo de pedreiros é contratado para fazer a obra. Sim de uma atividade de mobilização, onde as comunidades discutem o problema, elegem uma família e depois constroem a cisterna, comprando produtos locais, para movimentar a economia da localidade, da comunidade. Nada de empresas.
 
Apoiado inicialmente pela Agência Nacional de Águas (ANA), o P1MC foi incorporado como política pública pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), tendo como suporte o apoio do Conselho Nacional Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O objetivo do P1MC é beneficiar cerca de cinco milhões de pessoas em toda região semiárida, com água potável para beber e cozinhar, através das cisternas de placas.
 
Com o passar dos anos a ASA percebeu que o estoque apenas de água para consumo humano não era suficiente para a convivência. Foi daí que surgiu a idéia da segunda água para a produção, através de variadas tecnologias.  Nascia assim o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) que no último dia 02 de fevereiro completou oito anos com 80.903 tecnologias de água para produção já construídas. 
 
O P1+2 iniciou suas atividades com apenas 11 organizações e contou com o financiamento da Fundação Banco do Brasil (FBB) e Petrobras, tendo como meta a construção de 144 implementações como formas de captação e armazenamento da água da chuva, para produção de alimentos. Surgiu com a proposta de contribuir com a segurança alimentar e geração de renda dos/as agricultores/as através da valorização, construção e intercâmbio de conhecimentos.
 
O aniversário do Programa é comemorado nessa data, pois nos dias 02 e 03 de fevereiro de 2007 foram definidos os modelos de gestão, monitoramento do Programa e o calendário das atividades, durante o I Encontro Nacional do P1+2, que aconteceu em Recife. 
 
Na Região Sisaleira
Segundo Naidison, uma política da ASA ao criar o P1+2 foi que não houvesse concentração de projetos em mãos de uma ou outra entidade. Assim, como o Movimento de Organização Comunitária (MOC) estava na execução do P1MC, ele não podia acumular o projeto do P1+2. “Então o MOC sugeriu que a APAEB entrasse no processo e fizesse as seleções para isso. Deste modo a região nossa ficaria com o MOC na execução do P1MC e a APAEB no P1+2”, enfatiza Naidison.  
 
Em 2009, o MOC e a Associação dos Pequenos Agricultores Familiares (APAEB) de Serrinha, em parceria com a Cáritas de Rui Barbosa passaram então a atuar conjuntamente no processo de estoque de água, porque um dos critérios de escolha das pessoas a serem beneficiadas é que tenham sido beneficiadas pela primeira água.
 
Abrangendo 10 municípios baianos, em março de 2009 aconteceu em Serrinha a primeira Capacitação das Comissões Executivas Municipais de Recursos Hídricos de Convivência com Semiárido, do P1+2 com 40 representantes das comissões. Em maio desse mesmo ano foi realizado, com agricultores familiares de Quijingue e Araci, o primeiro Intercâmbio Intermunicipal, na propriedade de José Luiz, em Lagoa do Curral e na propriedade do agricultor José Reis, na comunidade da Baixa, em Araci. Na mesma época, em julho, aconteceu um curso de capacitação de pedreiros, em Riachão do Jacuípe. 
 
O MOC encerrou em janeiro de 2013, após 11 anos de atuação, sua participação como executor do P1MC. Até então o programa havia construído 419.178 cisternas rurais. O MOC executou o programa desde seu início, no ano de 2003, e neste período teve seu trabalho de incentivo à convivência com Semiárido reconhecido pela (ONU) Organização das Nações Unidas, através do Prêmio Anu no ano de 2010.
 
Após anos de participação no P1MC, ainda em 2013, O MOC passa a executar o P1+2 que visa à construção de tecnologias sociais de captação de água, como barragem subterrânea, cisterna-calçadão, cisterna de enxurrada, tanque de pedra, barreiro trincheira e bomba d’ água popular. Mas não é só isso. A implantação de uma tecnologia para o MOC e toda a rede ASA é mais do que uma obra. É a construção de um espaço social de onde tem emergido novas lideranças e uma juventude ativa, é a mudança socioeconômica e política importante em uma região historicamente dominada por oligarquias. 
 
Segundo Kamilla Ferreira e Gilson Alves, atuais coordenadores do P1+2 no MOC, já foram implementadas 1170 tecnologias de 2013 até o momento, com financiamentos MDS e FBB, nos Territórios do Sisal, Bacia do Jacuípe e Portal do Sertão. “Temos para este ano 403 tecnologias a serem implementadas”, afirma Gilson Alves.
 
Produção de Conhecimento
O leque de ações do P1+2 engloba outras perspectivas e talvez a mais importante seja a sua estrutura metodológica com as famílias produzindo conhecimento, antes invisibilizado. A valorização do conhecimento se dá através dos intercâmbios entre agricultores/as e técnicos e entre os próprios agricultores/as.  As famílias que são beneficiadas com as tecnologias participam de capacitações e tem na sistematização de suas experiências - através do boletim impresso ou banner - um processo de recuperação e registro de saberes e práticas locais de convivência com o Semiárido, portanto uma construção coletiva do conhecimento. Também trazem à tona uma realidade de Semiárido diferente daquela seca e crua presente no imaginário popular e em clássicos literários. 
 
Antes da cisterna ser construída no quintal do casal Rafael Silvestre e Terezinha Carneiro, na Fazenda Lagoa dos Bois, situada no povoado de Mandápolis, município baiano de Retirolândia, ter acesso à água era difícil. “Não tinha água. Antes da cisterna plantava com água da Embasa que ia buscar no povoado de Mandápolis e perdia muito porque sapecava tudo com o cloro, perdia cem por cento às vezes por causa do cloro”, relata Sr.Rafael, que tinha que andar muito para conseguir água para beber e cozinhar. O casal foi contemplado em agosto de 2013 com uma cisterna-calçadão, primeira tecnologia do P1+2 implementada pelo MOC, através do Termo de Cooperação Técnica e Financeira 046/2013, financiado pelo  MDS. 
 
Hoje, segundo Naidison, o estoque de água virou política e com o aumento do número de financiadores, a ASA teve de ampliar as parcerias. “Assim, uma mesma entidade pode hoje executar o P1MC e o P1+2 e mesmo outras ações da ASA”, ressalta. Hoje também há chamadas públicas por parte dos Estados. O MOC e a APAEB, por exemplo, têm participado das concorrências e executam ações de segunda água contratados pelo Estado. “A importância deste processo é que se amplia a possibilidade de estoque de água no Semiárido, a produção de alimentos, as pessoas têm melhores condições de vida, dentre outras”, complementa Naidison.
 
Basta andar pelo Semiárido para ver que, quando há vontade política, é possível fazer milagres ”de gente”.  A presença da água, com a implantação coletiva de uma cisterna, tem mudado não apenas a economia, ou a vida da família do Sr. Rafael, bem como da família de Dona Beatriz, em Barrocas, de Idelcina, em Riachão, de dona Merentina, em Araci, de seu Delfino, em Mandassaia II e de milhares de outros agricultores e agricultoras neste Semiárido afora. Muda também, e principalmente, a autoestima do povo que vê florescer a vida e também a possibilidade de reescrever sua história – desta vez como autor, e não mais como personagem.
 
Maria José Esteves
Programa de Comunicação do MOC  
 
 


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