O Semiárido nunca foi e não é lugar de ignorantes

09/10/2014

A imagem construída em relação ao Semiárido sempre foi aquela da inviabilidade e da insustentabilidade. Imagem gerada, principalmente, pelo fato que dele somente se veiculam, comentam e valorizam as noticias e fatos das secas, da falta de água, da hipotética incapacidade de seu povo, como se ao seu povo faltasse a capacidade de gerir seu próprio destino. A inviabilidade do Semiárido, onde e quando existiu, não se deve a fatores naturais e sim a fatores políticos. Se ela existiu nunca foi em decorrência da incapacidade de seu povo, mas sim das políticas assistencialistas e de exclusão que por muitos e muitos anos foram a tônica da ação governamental para o Semiárido. Foram as políticas de combate à seca que inviabilizaram o Semiárido e não o seu povo.
 
Isso, porém, vem mudando. Na última década se vêm criando gradativamente experiências e políticas de convivência com o Semiárido, que respeitam a dimensão de seus sujeitos. A mudança principal é a de leitura, de visão sobre o Semiárido. Ao invés do olhar como o lugar dos ignorantes e, por conseguinte, dos inviáveis, olha-se o Semiárido como o local onde vivem pessoas que produzem conhecimento, que sabem dirigir suas vidas e sua realidade, que querem ser e são sujeitos dos processos e não objetos.
 
Existia uma ausência de vontade de se implementar uma política ampla de convivência com o Semiárido, mantendo-se a maioria das ações direcionadas na matriz ultrapassada de “combate à seca”. Verdade é que a política das grandes obras, geradoras quase sempre de mais concentração e mais exclusão, é um elemento forte nesse período. As pequenas obras, que gerariam o efetivo acesso e domínio das pessoas, sobretudo dos mais pobres, assim como principalmente o acesso da população dispersa aos bens e serviços, ficaram por décadas desmerecidas e colocadas nas prateleiras. 
 
 “No combate a seca se trabalha na perspectiva da doação de viveres, de água, de esmolas e outros bens, vinculando estas doações ao voto nas elites do Semiárido, mantendo assim intacto o projeto político de dominação. A partir da manutenção do mesmo grupo de pessoas que sempre comandaram e exploraram o Semiárido através da distribuição da água, da comida na seca, através da distribuição de doações e esmolas e através de grandes obras”, se mantinha o povo escravo”. Este é o ponto de vista de Naidison Baptista, coordenador executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e assessor do Movimento de Organização Comunitária (MOC), ao destacar a diferença entre o combate à seca e a política de convivência com o Semiárido.
 
 “Na convivência com o Semiárido se trabalha no resgate do conhecimento das comunidades, conhecimento esse que esta na raiz da resistência das comunidades e que fez com que as comunidades permanecessem vivas até hoje. É nessa raiz que estão as tecnologias sociais. As cisternas vem da comunidade, as cisternas calçadão, o barreiro trincheira também, assim como o  tanque de pedra e  todas as tecnologias sociais de captação de água. Nós apenas aperfeiçoamos isso”, diz. São múltiplas, assim, as alternativas e estratégias possíveis para a garantia do acesso à água por suas populações, muitas construídas por elas próprias. Na luta diária pela sobrevivência, mulheres e homens, portadores de um vasto saber adquirido a partir da observação da natureza ao longo dos tempos, aprenderam a arte de conviver com o meio ambiente olhando os ciclos das chuvas, o comportamento das plantas, dos animais e as características do clima e do solo.
 
Elementos Significativos da Convivência
Existem elementos muito significativos de convivência com o Semiárido e que traduzem uma mudança radical na vida das pessoas. Vejamos alguns:
 
a) Um primeiro elemento é a democratização da água. Hoje, segundo Naidison, são 800 mil cisternas de placas e quatro milhões de pessoas que tem acesso a água potável de qualidade e, por conseguinte, quatro milhões de pessoas que não vão pedir esmolas de água, que são livres, que são cidadãs. O acesso à água na região gera transformações profundas na vida das famílias, diminuindo a incidência de doenças e reorganizando as relações familiares, liberando mulheres e crianças para outras atividades. Além disso, permite a diversificação da produção, garantindo a segurança alimentar, e liberta a família da dependência política dos carros-pipa, despertando-a para cidadania e para a organização comunitária. São mais de 800 mil mulheres que deixam de carregar água diariamente na cabeça para abastecer a casa e podem estudar, trabalhar, ser mais gente. 
b) Hoje temos uma lei federal que versa sobre a captação de água através de tecnologais sociais, lei oriunda da pratica dos movimentos e da ASA.  É política pública, prevista no orçamento da União.
c) Além das cisternas de consumo humano, hoje são 100 mil tecnologias de água de produção já implementadas. São 100 mil famílias e 400 mil pessoas que vivem no Semiárido produzindo alimentos de qualidade, alimentos saudáveis. Nossa perspectiva é que possamos ter uma politica um milhão de tecnologias sociais de água para produção, ampliando a politica hoje existente.
d) O Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE garantem a compra e comercialização dos produtos da agricultura familiar a preço justo e o escoamento da produção das famílias, voltado para alimentar as crianças nas escolas e aqueles que estão em risco de segurança alimentar. 
e) Os agricultores e agricultoras do Semiárido agora possuem uma crescente disponibilidade de assistência técnica adequada à realidade do Semiárido.
f) Em relação ao acesso ao crédito para a agricultura familiar, há pouco mais de uma década existia a disponibilidade de crédito de três bilhões de reais contra os 23 bilhões de reais disponíveis atualmente.
g) No que diz respeito ao acesso à terra, comunidades tradicionais como as de Fundo Pasto hoje tem uma Lei que Reconhece a posse, doa terra pelas comunidades, o que lhes garanta acesso a varias políticas. 
h) Do ponto de vista da produção e disseminação do conhecimento a convivência com o Semiárido não se baseia na transmissão vertical do conhecimento como via de regra se concretiza, olhando a uns como produtores e outros como recebedores de conhecimento. A convivência com o Semiárido reconhece a todos os agricultores como produtores de conhecimento e por isso a metodologia básica de trabalho é aquela do intercambio de saberes e de conhecimento, reconhecimento a todos como sujeitos.  Os processos de intercâmbio, hoje já em grande parte implementados, significam que as comunidades, organizações e grupos têm saberes, conhecimentos. Assume-se aí a teoria de que todos ensinam a todos, aprendem com todos, na medida em que as experiências são socializadas, debatidas, visitadas, refletidas e delas se tiram os ensinamentos para novas experiências, para a correção de rumos, construindo-se assim novos conhecimentos. 
i) Elemento outro de fundamental importância na convivência é a implementação   da  educação contextualizada que é uma ação que faz com que as escolas e as próprias crianças produzam conhecimento, ao invés de somente “engolir e vomitar” conhecimento que vem do sul do país/ou de outras realidades Nesse processo o conhecimento é produzido a partir de/e/para a modificação da sua própria realidade.
 
Resultados deste Caminhar
Grandes resultados são a mudança da realidade do Semiárido, a melhoria da vida das pessoas, a volta do sorriso e da qualidade de vida, mesmo que embrionariamente. “Na última grande estiagem não tivemos nenhuma mortalidade, nem mesmo de crianças. Na seca de 30 anos atrás tivemos 1 milhão de pessoas mortas”, lembra Naidison. Muitas crianças do Semiárido ou boa parte delas moram em casas a partir do Programa Minha Casa Minha Vida, estão sendo alfabetizadas, tem acesso a informática, e todas tem acesso ao mundo da eletricidade com a eletrificação rural. 
 
Grandes avanços também na trajetória das mulheres historicamente marcadas pela cultura patriarcal a qual sempre determinou espaços de homens e mulheres na nossa sociedade. Na região semiárida da Bahia já é visível o avanço das mulheres no acesso e controle social das políticas públicas; geração de renda (PAA e PNAE) com elevação considerável da renda das mulheres rurais, acesso a documentação tanto profissional como pessoal, implementação da política de enfrentamento a violência contra as mulheres com ações locais e territoriais. “Vale ressaltar, que com a ampliação da participação das mulheres nos espaços de poder e decisão,  como comissões, conselhos, direção sindical, também, a criação dos conselhos municipais das mulheres tem sido um importante instrumento de participação feminina para interferir em políticas para mulheres e consequentemente o fortalecimento da autonomia feminina. Os desafios continuam, mas não podemos negar que já houve avanços significativos que tem mudado a vida das mulheres na conquista de direitos que antes eram negados e violados”, enfatiza Selma Glória, coordenadora do Programa de Gênero, do MOC. 
 
Isso a que nos referimos acima não caiu do céu por acaso. Isso nasce de uma opção política de deixar de lado o combate à seca e atuar na dimensão da convivência com o Semiárido. A opção não é aquela de levar coisas, de fazer doações e dar para colher os votos. A convivência é uma opção política de trabalhar na libertação das pessoas. A sustentabilidade política é explicitada num processo contínuo e participativo de conquista da cidadania, com a democracia definida em termos de apropriação universal dos direitos humanos, incluindo a capacidade de participação na formulação e implementação de projetos de desenvolvimento. 
 
Quem vive no Semiárido e, quem estuda o seu povo, encontra, ao invés de um povo incapaz, pessoas lutadoras, criativas, fortes, resistentes, esperançosas e solidárias. Prova disso é que, por mais políticas perversas que se projete para o Semiárido e apesar de tudo que se faz contra ele, o povo continua vivo, de pé, se manifestando pela sua cultura, pelas suas crenças, cores, cheiros e sabores. Assim, não se pode considerar o povo do Semiárido como um povo incapaz e sim um povo vivo, digno e lutador por seus direitos. E, diga-se de passagem, são muitos!
 
 

 Segundo dados oficiais do Ministério da Integração, o Semiárido brasileiro abrange uma área de 969.589,4 km² e compreende 1.133 municípios de nove estados do Brasil região do Semiárido ocupa uma área de 969.589,4 km², abrangendo ao todo nove estados brasileiros. Desses, oito pertencem à região Nordeste (Piauí, Rio grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia) e um à região Sudeste (parte norte de Minas Gerais). Nessa região, vivem 22 milhões de pessoas, que representam 11,8% da população brasileira, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É o Semiárido mais populoso do planeta. 

  
Por:
Maria José Esteves
Programa de Comunicação do MOC


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