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Como o povo do semiárido detonou a indústria da seca
26/05/2014
Najar Tubino
Carta Maior
Juazeiro (BA) - Esta é uma história de como a zona rural do país, no caso específico da caatinga, onde as pessoas se organizaram e resolveram tomar o destino de suas vidas na prática, defendendo seus territórios, buscando acesso à água, protegendo suas sementes e, hoje em dia, dando lições de como é possível conviver com a aridez da natureza. Só para ilustrar vou contar um caso do agricultor Golinha, de Apodi (RN). Ele esta no encontro de agroecologia trocando e vendendo sementes, mudas e chás medicinais. As variedades crioulas de milha, contou ele, são transmitidas na sua família há quatro gerações. Neste mês de maio a semente que eles chamam de “vida longa” completou 302 anos. O pai dele morreu com 99, o avô 99 e o bisavô com 104. As outras duas variedades são “ligeiro”, um milho precoce e o “Zé moreno”, que era amigo do pai dele, já falecido, mas virou semente.
As mudanças no semiárido, na estrutura política e econômica, iniciaram há muitas décadas. Fazer cisterna era comum há mais de 70 anos. Quem relata esta história é o coordenador da ASABRASIL, Naidison Quintela Batista, de 74 anos, formado em teologia e pedagogia em Roma, baiano, e um dos responsáveis por uma rede de organizações sociais – são 700 -, que abrange nove estados do nordeste e o norte de Minas Gerais – o bioma caatinga, com suas variantes. Nos primórdios todos trabalhavam em torno do Movimento de Organizações Comunitárias (MOC), que já mantinha práticas como programas de trocas de sementes, de animais e fundos rotativos, que o agricultor pagava em produto ou em dinheiro.
Começando a interferir na política
As chamadas comissões de trabalho, que organizavam as frentes na época das secas, reunindo sertanejos que construíam açudes, estradas e outras obras de infraestrutura. A presença das organizações sociais tinha por objetivo travar a manipulação dos prefeitos, que carreavam os recursos para os ricos dos municípios do interior e para os parentes. Então, nas matrículas das frentes aparecia a mulher do prefeito, o cunhado, os tios e assim vai.
A mudança de rumo ocorreu em 1999, depois de mais uma seca. Foi criada a Articulação no Semiárido Brasileiro, a ASA, baseada numa carta de princípios, que ainda é a mesma, e onde as organizações para participar precisavam aderir ao documento. O X da questão era o seguinte: não bastavam produzir dossiês com reivindicações e propostas, era necessário executar, respeitando sempre as características de cada organização, que por sua vez, refletia as características de cada região. O foco central, cada vez mais, passou a ser a convivência com o semiárido.
Ação de impacto significativa
Os representantes das várias organizações decidiram definir uma ação de impacto significativa, que envolvesse a maioria das entidades. Assim nasceu o Programa Um Milhão de Cisternas, com a sigla P1MC. Cisternas de consumo humano, com capacidade de armazenar 16 mil litros, e suprir uma família com cinco pessoas, por nove, 10 meses. Entretanto, o fundamental estava na maneira como construir as cisternas e como escolher as famílias que participariam do programa. Ou seja, não se trata de uma iniciativa de construção, onde uma empresa, ou um grupo de pedreiros é contratado para fazer a obra. É uma atividade de mobilização, onde as comunidades discutem o problema, elegem uma família e depois constroem a cisterna, comprando produtos locais, para movimentar a economia da localidade, da comunidade. Nada de empresas.
A ASA e seus ativistas começaram a entrar na casa das pessoas. Discutiam, além da construção da cisterna, a maneira como eles armazenavam água, como consumiam, como cultivavam a terra e muitas outras coisas. No final, definiram sete tecnologias de construção de cisternas de consumo humano. O primeiro apoio do governo federal veio na época do Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho. Uma “experiência” para “testar” 500 cisternas. Muito mais importante foi a definição do processo de construção, que abrange uma metodologia completa, desde os componentes usados, os custos, a mobilização das famílias e as compras locais. A partir daí, conseguiram o apoio da Agência Nacional de Águas em 2001, para construção de 12.300 cisternas, somadas as outras 500, dava um total de 12.800 cisterna. Foi o pontapé inicial.
A transição política em 2003
A grande preocupação da ASA desde o início: como fazer o controle social das cisternas. Na metodologia ficou aprovado o seguinte, válido até hoje: cada cisterna tem um número de registro, com os dados de localização geográfica. Na hora da família receber a cisterna, tiram uma foto ao lado do registro, a família assina um termo de recebimento e um material educativo. O governo federal assumiu a método, já virou uma lei federal. Significa, que ao repassar recursos aos estados e municípios, todos tem que cumprir com as exigências expostas na lei. Conclusão: se tornou uma política pública, criada pelos sertanejos e com a operacionalização e organização da ASA e sua rede de entidades.
Hoje, as negociações para construção de cisternas são formalizadas via contrato, através de licitação pública e das organizações da sociedade civil. Os coordenadores da ASA aproveitaram a posse de Lula em 2003, para colocar projetos em várias áreas. Onde houvesse uma brecha, um conhecido, eles entravam com suas propostas. Contaram com o apoio do Frei Beto e de Odew Grawej. Assim fecharam o primeiro convênio com o governo federal em julho de 2003. Dez anos depois, o primeiro contrato com a Petrobras, que está encerrando neste mês de maio, com a construção de 20 mil tecnologias de Segunda Água, no valor de R$200 milhões. São as chamadas cisternas de produção, a água que será usada na criação de animais e para plantio. Podem armazenar desde 52 mil litros, onde a água é captada de um calçadão de cimento, com declividade, até a cisterna de enxurrada, onde a água é captada de uma encosta, uma elevação, e são colocados filtros para decantar, antes do recolhimento. O barrreiro trincheira, onde cavam poços com mais de três metros de profundidade, capta até 300 mil litros, o tanque de pedra, que é uma formação característica em várias regiões da caatinga – eles aumentar as barreiras de pedra com cimento, formando uma bacia, quando chove a água fica represada, acumulando 700, 800 a um milhão de litros. Por último: a barragem subterrânea construída nos leitos dos rios e riachos secos, onde eles cavam numa garganta, um estreitamento, jogam uma loca, tapam novamente com terra e quando chove a água bate na lona e fica armazenada no subsolo.
Novecentas mil cisternas e 4,5 milhões de pessoas
Contando as cisternas construídas pela rede da ASA – 537 mil -, mais os governos estaduais e consórcios municipais o número chega a 900 mil, com 4,5 milhões de pessoas beneficiadas em todo o semiárido. Além de mais 500 mil pessoas que já tem acesso à água de produção. No final de 2013, a ASA assinou outro contato com o BNDES, também de R$200 milhões, para construção de oito mil tecnologias diretamente com o banco, e outras 12 mil, por intermédio da Fundação Banco do Brasil, com recursos repassados também pelo BNDES. O contrato acaba no final de 2014. Com o Ministério do Desenvolvimento Social o contrato com a ASA envolve outras 20 mil tecnologias e mais R$ 200 milhões – nove mil já foram entregues. O contrato se estende até maio de 2015. E mais: outro contrato com o MDS para construção de 34 mil cisternas de consumo humano. E, está em discussão, um programa para construção de cinco mil cisternas para escolas rurais. Quando tem seca, não tem água, não tem aula.
A ASA virou uma OCIP, uma organização de interesse público, para poder operacionalizar os contratos com o governo federal e seus afiliados. Ela só concorre em licitação nacional, para não concorrer com as entidades estaduais. Quando ganha a licitação, torna a realizar uma licitação para contratar as organizações sociais, que executarão as obras. São 110 organizações envolvidas com a execução do P1MC e do programa Uma Terra Duas Águas. No total o número cresce para 160, porque algumas trabalham com os dois programas. Cada equipe de técnicos tem um coordenador, um gerente financeiro, um auxiliar e quatro técnicos de campo. São 1.120 técnicos envolvidos nos programas.
O Candeeiro para alumiar o sertão
O trabalho da ASA e suas 700 organizações sociais envolve além das cisternas, um grande intercâmbio de informações e de experiências entre agricultores e agricultoras, o incentivo e a organização de bancos e casas de sementes crioulas, enfim, da prática econômica, social cultural da vida do sertanejo. Providência que gerou a criação de um veículo popular, que é o Candeeiro, chamado boletim de experiências, onde as famílias contam a sua história, e relatam a sua experiência no semiárido. Já foram elaborados dois mil exemplares – é uma página impressa, com tiragem de mil exemplares.
Para encerrar. Chega o prefeito na comunidade com o carro pipa. Manda o pessoa fazer a fila. Chega o líder da comunidade diz que ali não tem nada de fila. Dá o nome das famílias, cujas cisternas serão abastecidas. E quando acabar a água, se não chover, voltarão a procurar a prefeitura. É óbvio, que esta ainda não é a realidade de todo o semiárido, sem contar as cidades do interior, onde as populações ainda estão sujeitas ao poder político e econômico de famílias ou de grupos, que não tem o menor escrúpulo em pisotear na cabeça dos sertanejos.
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