Terra e trabalho para os deserdados do Sertão

19/07/2006

Em muitos municípios da região semi-árida da Bahia, o constante processo de partilha das propriedades rurais fez surgir uma grande parcela de deserdados. Espremidos em propriedades de um ou dois hectares ou sem terra nenhuma, esses agricultores não têm como garantir o sustento de suas famílias, e ficam obrigados a trabalhar em terra alheia ou engrossar as fileiras dos desempregados rurais e urbanos. E em regiões como a do Sisal, a alternativa de ocupar terra improdutiva tampouco existe – latifúndios com essa característica não há na região.

Nos Territórios Rurais do Sisal e da Bacia do Jacuípe, 52% dos estabelecimentos rurais têm até 5 hectares – quantidade de terra insuficiente para sobreviver no semi-árido. Nessas regiões, há quase 100 mil pessoas que precisam de terra para poder sobreviver da agricultura. Sem essa terra, não tem uma perspectiva sustentável de sobrevivência e permanência para essas famílias no meio rural.

Alguns agricultores, porém, mobilizados, informados e incentivados pelos movimentos sociais da região, começam a vislumbrar uma outra perspectiva para uma vida digna no campo: A aquisição de terra através do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), pelo qual o Governo Federal concede financiamentos para a compra de terra, a construção de moradias e a implantação de projetos produtivos nos assentamentos.

Novo Horizonte na própria terra

No lugar de uma fazenda no município de Ourolândia, a 363 km de Salvador, abandonada há oito anos, um grupo de 26 famílias começou a estruturar sua nova vida como donos de terra própria. Nos fundos das casas construídas em sistema de mutirão através de um Subprojeto de Investimento Comunitário (SIC), uma forma de financiamento a fundo perdido prevista no programa, já começa a se espalhar o verde de hortas cheias de abóbora, tomate, pimentão, coentro, girassol, berinjela, e muitos outros tipos de hortaliças para consumo próprio.

A base produtiva do assentamento de 822 hectares batizado de Novo Horizonte, porém, é constituída pelos 22 hectares de sisal que já existiam no local, mas precisavam ser recuperadas, e outros tantos de sisal replantado, e o rebanho de caprinos e ovinos que o grupo cria de forma coletiva. A aquisição dos animais está em curso e o projeto prevê a compra de um total 200 matrizes cuja renda, junto com a do sisal, garantirá o pagamento da terra.

Ao contrário dos assentamentos da Reforma Agrária que se viabilizam através da desapropriação de terra improdutiva e a indenização dos proprietários, os assentamentos do Crédito Fundiário se baseiam na compra da terra através da livre negociação. No caso do assentamento Novo Horizonte, o valor da terra é de R$ 150 mil, financiado a juros anuais de 3% em 14 anos e com carência de dois. “Só o sisal que destocamos e plantamos é o suficiente para quitar a primeira parcela do crédito no valor de R$ 4 mil”, assegura Geraldo Ferreira da Silva, presidente da associação do assentamento. Pelas regras do Crédito Fundiário, se o assentamento quitar todas as parcelas em dia, tem direito a um rebate de até 50% do valor total.

Esperança por uma vida melhor

Terra e muito, muito trabalho – é isso que o grupo conquistou. “Esse projeto é muito bom para pobre que gosta de trabalhar”, garante Deraldo Trabuco Lima, com 63 anos o mais velho do grupo. Deraldo foi um dos pioneiros e já tentou conquistar a sua terra no governo anterior, mas só agora conseguiu alcançar seu sonho. Já está colhendo sua primeira safra de milho e feijão de corda e lembra-se daquilo que diz ser o dia mais feliz da sua vida: “O dia de mais alegria foi quando veio a notícia que o governo pagou a terra”, comemora ainda hoje.

Isso foi em Junho de 2005 e hoje já se percebe a mudança que a conquista da terra gerou na vida das famílias. Até as crianças passaram a comer mais, o que o grupo não só atribui às hortas e plantações, mas também à qualidade da água que no assentamento jorra de um poço artesiano que já existia no local e é suficiente para abastecer toda a comunidade. A luz elétrica também já chegou, graças à garra e iniciativa do próprio grupo, que acabou fincando postes de energia na praça do povoado e aproveitando a ligação que já existia na fazenda.

Muitos dos assentados em Novo Horizonte eram desempregados, viviam de bicos, ou plantavam em terra alheia. Agora, estão orgulhosos em se ver como proprietários de extensões de terra que nos seus municípios de origem, na Região Sisaleira, seriam inalcançáveis. Para isso, pagam o preço da distância da terra natal. A maioria vem de Conceição do Coité, que fica a 245 km do assentamento. Foi o preço das terras bem acima do limite permitido pelo Programa de Crédito Fundiário, que os fez encarar um novo começo numa terra distante.

Longe ou distante – os desafios se parecem

Não tão longe dos seus municípios de origem e ainda sem luz nas suas casas recém construídas, mas com um povoado enfeitado de flores e o verde do milho cercando as casas, o assentamento Esperança, no município de Biritiba, também é fruto do Programa Nacional Crédito Fundiário. Esse grupo conseguiu conquistar sua terra na mesma época do Assentamento Novo Horizonte. A região que dista 325 km de Salvador e fica perto de Jacobina, porém, já é outra – predominam o relevo e clima serranos do Piemonte da Chapada Diamantina, com temperaturas mais frescas e um rio que passa perto do assentamento. O grupo já colheu sua primeira safra de milho, mas ainda luta para implementar os cultivos que garantiriam renda suficiente para o pagamento das parcelas do crédito.

A maioria das famílias que compõem o assentamento já tinha desistido da agricultura no momento em que foram incentivados a participar do grupo que se propunha a comprar terra própria. José Jercival Gomes, por todos conhecidos como “Bal”, conta que foi difícil reunir um número suficiente de famílias na zona rural. “Depois de participar de um seminário em Riachão do Jacuípe, onde o MOC fez a apresentação do Programa, tentei reunir o pessoal, mas só apareceram 10 famílias. Aí senti que precisava ir ao encontro de outras famílias que tinham se deslocado da região para a periferia das cidades”, explica.

Desempregados tornam-se donos de terra

“A maioria dos assentados aqui eram desempregados e moravam sem água encanada e sem luz. Eram meeiros, que não tinham uma moradia própria”, conta Gecilene Oliveira, secretária da Associação Assentamento Rural Esperança, que conta com 25 famílias. “Hoje, além de casas, nós temos a terra para plantar e não dependemos mais de um fazendeiro que diz para tirar a roça que deu para plantar antes do momento, como muitas vezes aconteceu com as pessoas que moram aqui nesse assentamento.”

Para garantir o sustento e ganhar o dinheiro para pagar o crédito, o projeto do assentamento prevê a criação de ovelhas e vacas leiteiras e cultivos de banana e maracujá. A organização comunitária é exemplar: “Todas as sextas-feiras é dia de mutirão, a gente junta as pessoas e vai ao trabalho para dali tirar o lucro”, enfatiza Gecilene.

Mas para muitos, esse espírito comunitário é algo completamente novo na sua vida e teve que ser construído ao longo da demorada luta pela terra. “Nos grupos teve pessoas que nunca tinham participado de uma reunião, eram tímidas e desorganizadas. O maior desafio é transformar estas pessoas em pessoas ativas e passar credibilidade para eles, pois na maioria das vezes elas não acreditam que pode dar certo. O histórico da vida deles parece que diz: isso não vai dar certo”, comenta Neilan Leite Silva, capacitador local do projeto especial Acesso à Terra do MOC em Jacobina.

Outro desafio, segundo Neilan, é a própria demora do processo, desde a formação do grupo até a compra da terra. “Infelizmente, muitos acabam desistindo”, comenta. No caso do Assentamento Esperança, o processo levou dois anos e meio desde a fundação do grupo até a compra da terra. Mas para os que persistiram, a recompensa está na mesa: o alimento que vem da própria terra e garante a sobrevivência da família.

Dica:
Confira mais informações sobre Programa Nacional de Crédito Fundiário no site oficial: www.creditofundiario.org.br