Trocas solidárias resgatam o espírito comunitário

11/06/2007

“Antigamente meus pais tinham criação de carneiro, que viviam soltos pastando na própria caatinga, quando chegava o fim de semana era o momento de prender os animais para que fosse escolhido o melhor. Meu pai matava e repartia entre os vizinhos, na quantidade que sobrava colocávamos sal para comer durante toda a semana. No outro fim de semana era um dos vizinhos quem ficava responsável pela matança de um novo animal que também era partilhado entre todos. Com o passar do tempo foi chegando pessoas com muito dinheiro que iam fazendo grandes criatórios, cercados com arame farpado, nós já não tínhamos espaço para a pequena criação. As terras que eram comuns a todos, passaram a ter dono e nós começamos a passar dificuldades, porque eles criavam boi e entre nós quase ninguém tinha condições para isso, um ou outro que tivesse era considerado milionário. Passamos a sobreviver do plantio na roça, agora eram os produtos que o outro não tinha que trocávamos, mas com o tempo e a entrada do dinheiro isso foi se perdendo, ninguém se preocupava mais com quem nada tinha”.

Essa foi a história da comunidade de São Lourenço contada por Dona Gesselina Mota dos Reis, agricultora do município de Riachão do Jacuípe, na Bahia, que se emocionou ao reviver no momento das trocas solidárias, cenas de sua vida, marcada por experiências tão ricas da infância de muitos anos atrás, onde a convivência girava em torno da idéia de comunidade. A forma de organização social de agricultores, como Dona Gesselina, tinha como base principal a igualdade de oportunidades para todos e a partilha dos excedentes do trabalho produtivo, impedindo a concentração da propriedade nas mãos de poucos e garantindo, assim, a coesão sócio-econômica da comunidade.

Experiências como esta serviu de inspiração para que a Rede de Produtoras da Bahia e a Agência Regional de Comercialização do Sertão da Bahia (ARCO-Sertão), em parceria com o Movimento de Organização Comunitária (MOC) levassem para o espaço da I Feira de Mulheres Produtoras, durante o Ciclo da Agricultura Familiar e Economia Solidária realizado em Feira de Santana, de 10 a 12 de maio, o momento de trocar saberes e produtos como artesanato de sisal e em tecido, sequilhos, doces, mel, ovos de galinha caipira, entre outros.

Trocando desigualdade por solidariedade - Trocar uma bolsa feita de sisal por uma bandeja de palha parece um ato simples, porém, para quem busca ir além daquilo o que já conhece é uma excelente oportunidade de aprendizado. Um exemplo disso é Simone Nunes do Nascimento, da Rede de Produtoras da Bahia, para quem esta experiência teve um significado importante. “Vai ser muito útil esta troca, porque eu trabalho apenas com o sisal e agora com este modelo vou poder variar a minha produção”.

Cenas como estas foram vividas durante as trocas solidárias, momento de tornar acessível ao outro o produto que muitas vezes a falta de dinheiro impede de obter. A troca estimula o desenvolvimento econômico local, incentivando as pessoas a produzir, principalmente as que estão num processo de exclusão social, ajudando a aumentar a qualidade de vida dessas pessoas. Mas não parou por aí, além de satisfazer as necessidades materiais, o espaço também proporcionou trocas de experiências, o conhecimento de como o outro realiza seu trabalho, as dificuldades e também as vitórias. Foi a oportunidade de aprender um pouco mais.

Para Patrícia Nascimento Oliveira, coordenadora da Rede, este foi um momento de fortalecimento para todos os grupos que estavam presentes. “Os grupos trocaram tudo, de linhas e bordados a experiências. Ser solidário no modelo de economia capitalista, é algo cada vez mais raro, por isso é importante resgatarmos essa tradição tão antiga e quem sabe levá-la para o nosso dia-a-dia”, ressalta Patrícia, feliz com o sucesso geral do evento.

 Expressão em uma moeda, “ÔXE” - Logo pela manhã do segundo dia da feira, uma comissão organizadora visitou os 70 empreendimentos envolvidos explicando como seria a dinâmica das trocas. Cada responsável por uma barraca levaria um de seus produtos para uma mesa ao centro da praça, onde poderia ser trocado por qualquer outro, com o intermédio de uma moeda social que facilitou o processo. A moeda que teve valor apenas simbólico foi chamada de “ÔXE”. A escolha do nome ocorreu a partir da observação de uma das falas mais corriqueiras do dia-a-dia do sertanejo. Ao buscar sugestões durante uma reunião da comissão alguém pelo hábito já internalizado grita expressão “ÔXE”, que por ser um aspecto comum, presente nos dialetos dos territórios, Sisal, Bacia do Jacuípe e Portal do Sertão, envolvidos no Ciclo, foi aprovado por todos.

O papel de integrar e incluir socialmente os participantes a partir das trocas demonstrou que existem alternativas de circulação de mercadoria que podem contribuir para sustentabilidade sem que as pessoas fiquem reféns do capital. Na avaliação de Gisleide do Carmo Oliveira, coordenadora do Sub-Programa de Agroindústria e Comércio, do MOC, ainda pode ser considerado um outro aspecto positivo do evento, o resgate cultural. “Foi fácil perceber a emoção das pessoas ao verem seus produtos valorizados pelo outro durante as trocas e o próprio retorno a esta forma de convivência tão antiga e que pode ajudar na melhoria de vida das pessoas”, ressalta, enfatizando que a importância das trocas está na valorização social do trabalho humano.